“Tenho certeza, foi ele!”. Poucas frases parecem tão convictas e definitivas em uma investigação criminal quanto a de uma vítima ou testemunha apontando o autor de um crime. O reconhecimento de pessoas, seja presencialmente, por meio de fotografias ou, mais recentemente, através de tecnologias de reconhecimento facial, é uma ferramenta investigativa amplamente utilizada. No entanto, por trás da aparente segurança dessa afirmação, esconde-se uma das fontes mais persistentes e devastadoras de erros judiciários em todo o mundo: a falibilidade do reconhecimento humano e a falta de rigor nos procedimentos adotados.
Por décadas, o sistema de justiça criminal brasileiro tratou o reconhecimento de pessoas, especialmente o informal realizado por fotografias em delegacias, com uma perigosa condescendência, muitas vezes como um mero ato inicial de investigação sem grandes formalidades. O resultado? Incontáveis casos de pessoas inocentes presas e condenadas com base em identificações equivocadas, frequentemente influenciadas por procedimentos sugestivos e vieses inconscientes.
Felizmente, uma mudança crucial está em curso, impulsionada por uma jurisprudência mais atenta e garantista do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Hoje, mais do que nunca, é fundamental entender os perigos inerentes a essa modalidade de prova, conhecer as regras legais que devem ser seguidas (mas que ainda são frequentemente ignoradas) e saber como a defesa técnica atua para anular reconhecimentos inválidos e lutar contra condenações injustas.
1. A Armadilha da Memória: Por Que o Reconhecimento Humano Falha Tanto?
Contrariando o senso comum e a forma como filmes retratam testemunhas oculares, a memória humana não funciona como uma câmera de vídeo que grava e reproduz fatos com precisão. Ela é um processo reconstrutivo, altamente sugestionável e sujeito a inúmeras falhas. Estudos da psicologia do testemunho demonstram consistentemente que fatores como:
- Estresse e Trauma: Situações de alto estresse (como durante um assalto) prejudicam a capacidade de codificar detalhes precisos, especialmente de rostos desconhecidos.
- Condições de Visualização: Pouca luz, distância, tempo curto de exposição, disfarces (boné, máscara) afetam drasticamente a percepção.
- Decurso do Tempo: A memória se degrada rapidamente. Quanto mais tempo entre o evento e o reconhecimento, maior a chance de erro.
- Viés da Própria Raça (Own-Race Bias): Temos mais dificuldade em distinguir e reconhecer rostos de pessoas pertencentes a grupos étnico-raciais diferentes do nosso.
- Transferência Inconsciente: A testemunha pode reconhecer um rosto familiar de outro contexto (alguém que viu antes no local, na mídia) e associá-lo erroneamente ao crime.
- Sugestionabilidade: Este é um dos fatores mais críticos influenciados pelo procedimento. A forma como o reconhecimento é conduzido pode “contaminar” a memória da testemunha. Perguntas direcionadas (“É este o homem que você viu?”), a apresentação de um único suspeito (show-up), o reforço positivo do policial (“Muito bem, era esse mesmo que suspeitávamos”) podem levar a testemunha, mesmo que inconscientemente, a fazer uma identificação incerta ou completamente falsa.
Esses fatores demonstram que a prova de reconhecimento é inerentemente frágil e exige máximo rigor procedimental para ter alguma validade epistêmica (capacidade de produzir conhecimento confiável).
2. O Reconhecimento Fotográfico na Delegacia: Uma Prática Comum, Perigosamente Informal
A realidade na maioria das delegacias brasileiras, infelizmente, passa longe do rigor necessário. O reconhecimento fotográfico, muitas vezes o primeiro (e único) método utilizado, frequentemente ocorre de maneiras informais e altamente sugestivas:
- Álbuns de Suspeitos (“Book”): Apresentação de álbuns antigos, muitas vezes contendo apenas fotos de pessoas já fichadas pela polícia, direcionando a suspeita e aplicando um viés de confirmação.
- Foto Única (Show-up Fotográfico): Mostrar à testemunha a foto de um único suspeito, perguntando se “é ele”. Este é um dos métodos mais sugestivos e propensos a erro, pois não oferece alternativas.
- Fotos de Redes Sociais ou Aleatórias: Uso de imagens obtidas informalmente, sem critério de semelhança com a descrição inicial e sem qualquer controle sobre a qualidade ou contexto da foto.
- Ausência de Procedimento Formal: Geralmente, esses reconhecimentos informais não seguem nenhuma das regras previstas em lei, não são documentados adequadamente (sem auto circunstanciado) e ocorrem sem a presença de defesa ou testemunhas instrumentárias.
Essa prática rotineira, embora comum, é um terreno fértil para a criação de falsas memórias e identificações equivocadas, com consequências trágicas para os acusados injustamente.
3. O Que Diz a Lei?
O Código de Processo Penal brasileiro, desde sua origem, estabelece regras claras para o procedimento de reconhecimento de pessoas, visando justamente minimizar os riscos de erro. O Artigo 226 dispõe:
“Art. 226. Quando houver necessidade de fazer-se o reconhecimento de pessoa, proceder-se-á pela seguinte forma: I – a pessoa que tiver de fazer o reconhecimento será convidada a descrever a pessoa que deva ser reconhecida; 1 II – a pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança, convidando-se quem tiver de fazer o reconhecimento a apontá-la; III – se houver razão para recear que a pessoa chamada para o reconhecimento, por efeito de intimidação ou outra influência, não diga a verdade em face da pessoa que deve ser reconhecida, a autoridade providenciará para que esta não veja aquela; IV – do ato de reconhecimento lavrar-se-á auto pormenorizado, subscrito pela autoridade, pela pessoa chamada para proceder ao reconhecimento e por duas testemunhas presenciais.
Analisando os incisos:
- I – Descrição Prévia: Antes de ver qualquer suspeito ou foto, a testemunha deve descrever as características de quem ela viu. Isso ancora a memória original e evita que a descrição seja contaminada pela imagem do suspeito apresentado posteriormente.
- II – Lineup com Similares: O suspeito deve ser apresentado junto com outras pessoas parecidas (enchimentos ou “fillers”). Isso testa a real capacidade da testemunha de identificar o culpado, e não apenas escolher o mais parecido ou o único apresentado. A lei diz “se possível”, mas a jurisprudência recente interpreta essa possibilidade de forma restrita, exigindo justificativa concreta para não o fazer.
- III – Proteção da Testemunha: Medida para garantir a segurança e a isenção da testemunha.
- IV – Auto Circunstanciado: Tudo deve ser registrado em um documento detalhado, assinado por todos os presentes, garantindo a rastreabilidade e a transparência do ato.
Por anos, essas regras foram vistas por muitos como “meras recomendações”. Essa interpretação, contudo, foi drasticamente alterada.
4. A Virada Jurisprudencial do STJ: Reconhecimento Fora do Art. 226 é Prova Inválida!
Um divisor de águas ocorreu a partir de outubro de 2020, com o julgamento do Habeas Corpus 598.886/SC pelo Superior Tribunal de Justiça. Nesse e em diversos julgamentos posteriores (HC 652.284/SC, HC 712.781/RJ, entre muitos outros), a Sexta e a Quinta Turmas do STJ consolidaram um novo e mais garantista entendimento:
- As formalidades do Art. 226 do CPP NÃO são meras recomendações, mas sim requisitos legais obrigatórios para a validade do ato de reconhecimento como prova.
- O reconhecimento feito em desacordo com o Art. 226 (especialmente os incisos I e II – descrição prévia e lineup com similares) é inválido e não pode ser usado para fundamentar uma condenação, nem mesmo se confirmado posteriormente em juízo.
- O reconhecimento fotográfico, por sua natureza ainda mais sugestiva e menos confiável, deve seguir no mínimo os mesmos cuidados do reconhecimento pessoal, incluindo a apresentação de fotos de pessoas similares junto com a do suspeito. O reconhecimento por foto única ou por exibição de álbuns é considerado inválido como prova.
- A confirmação do reconhecimento inválido em juízo não o “conserta”, pois a memória já foi potencialmente contaminada pelo procedimento falho na fase policial.
O STJ baseou essa virada na alta taxa de erros judiciários causados por reconhecimentos falhos, na necessidade de garantir uma mínima confiabilidade epistêmica às provas e na proteção do direito à liberdade e à presunção de inocência. Essa jurisprudência representa uma ferramenta poderosíssima para a defesa.
5. Reconhecimento Facial por Câmeras e IA: Nova Tecnologia, Velhos Problemas?
A crescente utilização de sistemas de reconhecimento facial por câmeras de segurança pública ou softwares de IA em investigações traz novas complexidades, mas os riscos fundamentais persistem:
- Viés Algorítmico: Muitos algoritmos demonstram vieses, identificando erroneamente com mais frequência pessoas de determinados grupos étnico-raciais.
- Qualidade da Imagem: Imagens de baixa resolução, ângulos desfavoráveis ou iluminação ruim comprometem a precisão.
- Falta de Procedimento: Como a “identificação” feita pelo software é apresentada? É usada para confrontar testemunhas sem os devidos cuidados (Art. 226)? Há risco de “automation bias” (confiança excessiva na máquina)?
A defesa argumenta que os mesmos princípios de cautela e a necessidade de observância de procedimentos que garantam a confiabilidade, inspirados no Art. 226, devem ser aplicados a essas novas tecnologias, sob pena de apenas modernizarmos a produção de erros judiciários.
6. Como a Defesa Atua
Diante de um caso onde o reconhecimento é peça chave da acusação, a atuação da defesa é crucial e multifacetada:
- Investigação Detalhada do Procedimento: O advogado buscará entender, através da análise minuciosa dos autos e, se necessário, de oitivas em juízo, exatamente como o reconhecimento foi realizado na fase policial. Foi fotográfico ou pessoal? Havia outras pessoas? A testemunha descreveu o autor antes? Foi mostrado um álbum ou uma única foto? O ato foi documentado em auto circunstanciado?
- Confronto com o Art. 226 CPP: Cada etapa do procedimento realizado será comparada com os requisitos expressos nos incisos do Art. 226. Qualquer desconformidade será apontada.
- Aplicação da Jurisprudência do STJ: A defesa fundamentará seus pedidos de nulidade citando diretamente os precedentes do STJ (HC 598.886/SC e outros), demonstrando que a inobservância das formalidades legais invalida o ato como prova.
- Questionamento da Confiabilidade Intrínseca: Mesmo que alguma formalidade tenha sido cumprida, a defesa pode questionar outros fatores que afetam a confiabilidade: tempo decorrido, condições de visualização originais, possibilidade de sugestionabilidade, existência de contradições entre a descrição inicial e a pessoa reconhecida.
- Demonstração da Dependência da Condenação na Prova Viciada: Argumentar que, excluindo-se o reconhecimento inválido, não restam provas independentes e robustas capazes de sustentar uma condenação, requerendo a absolvição por insuficiência probatória (Art. 386, VII, CPP).
- Requerimento Formal de Nulidade: Apresentar petições específicas (em defesa prévia, alegações finais, recursos, Habeas Corpus) requerendo ao juiz ou tribunal que declare a nulidade do ato de reconhecimento e desconsidere seu valor probatório.
Conclusão:
O reconhecimento de pessoas é uma ferramenta investigativa que, se mal utilizada, transforma-se em uma perigosa máquina de produzir injustiças. A memória humana é falível, e procedimentos informais e sugestivos apenas potencializam o risco de erro. A recente e firme posição do Superior Tribunal de Justiça, ao exigir o cumprimento rigoroso das formalidades do Artigo 226 do CPP, representa um avanço civilizatório fundamental na proteção contra condenações baseadas em provas tão frágeis.
Contudo, a mudança de cultura nas práticas policiais e a aplicação consistente dessa jurisprudência em todas as instâncias ainda são desafios. Nesse cenário, a atuação da defesa técnica, atenta, combativa e atualizada, é mais essencial do que nunca. É papel do advogado criminalista fiscalizar a legalidade dos procedimentos, invocar as garantias legais e jurisprudenciais, e lutar incansavelmente para que nenhum cidadão seja condenado com base em um reconhecimento duvidoso ou inválido. Anular uma prova falha não é buscar impunidade, mas sim garantir a integridade do devido processo legal e combater o flagelo do erro judiciário.